Conto de Oswaldo Vivian Júnior
Sonhava em ser músico profissional. Mas até que suas mãos e queixo abraçassem o violino com o carinho necessário a lhe garantir uma cadeira no palco de um municipal, aproveitava as férias e os feriados para vencer a timidez realizando ensaios abertos pelas ruas mais movimentadas da cidade mesmo naqueles dias em que as duas garrafinhas de água congelada que ele levava de casa em uma pequena mochila quase borbulhavam bem antes do meio-dia, descumprindo sua outra função que era evitar que o sanduíche preparado por sua zelosa mãe com recheio a base de maionese azedasse bem antes que ele se lembrasse de sua existência. “Não ‘me’ esqueça de comer esse sanduíche, hein Marcelo! Melhor até umas onze, senão azeda. Mas seja honesto comigo. Se não comer, quero ele aqui de volta para eu saber que você não comeu”, dizia ela todas as manhãs. Obediente, ele levava o sanduíche de volta. Mesmo azedo.
Comer? Beber? Sequer percebia o olhar de desejo de algumas meninas que por ele passavam! Tardava inclusive a se dar conta do eventual sumiço da nota de dez reais que ele mesmo colocava na caixa do instrumento junto aos seus pés para incitar os transeuntes a prestigiarem o futuro artístico da nação. Era um garoto focado. Marcelo só tinha olhos para seu instrumento e ouvidos para sua música. E desafinasse, quer pela pouca intimidade com Villa-Lobos, Bach ou Chopin, ou pelas inconvenientes gotas de suor que saltavam de seu rosto e bamboleavam pelas cordas do violino, ele não hesitava: depois de uma enxugadinha rápida com a manga da camiseta, punha-se no modo “reiniciar” exacerbando ainda mais o foco naquela nova tentativa de não surrupiar uma única nota das partituras a ponto de muitas vezes só perceber que o comércio havia fechado quando ouvia os aplausos calorosos e os assobios estridentes dos catadores de papelão.
Embora acanhado com os confetes e serpentinas de seu eufórico público noturno, nunca resistia ao impulso de se curvar em agradecimento com a mesma pompa e rigidez corporal dos mais célebres violinistas. A diferença estava em seu sorriso, expressão de um regozijo não pela carícia ao ego, mas pela satisfação de ainda se ver em início de trajetória, o que significava que até ser capaz de ouvir palmas como aquelas em um ambiente com acústica impecável teria tempo de sobra para realizar o árduo trabalho de adestramento de suas três corujas domésticas: mãe e tias. Em sua lógica, recebesse convites na atual fase de sua “carreira”, seria obrigado a aceitar apenas o da orquestra que tivesse o bom senso de posicionar os violinistas no fundo do palco para que ele não passasse pelo vexame frontal de ver suas corujas sendo expulsas do teatro no meio do concerto pelo excesso de flashes a cegarem seus colegas, já que ele, prudente, estaria de óculos escuros, e o volume dos suspiros a enlouquecer o maestro de tal forma que não lhe restaria outra opção a não ser enxotá-las dali com a própria batuta e sob a ovação dos presentes. Incluindo Marcelo.
– Vou deixar aqui um agrado, filho. Sei que não é muito. Mas é que eu ando num miserê… – lamentou um senhor ao depositar cinco reais em sua “caixa-chapéu” e imediatamente retirar dali nove moedinhas de cinquenta centavos. Faltando horas para a chegada da turma do papelão, aquela ação inusitada trouxe o rapaz excepcionalmente de volta à Terra, algo que naquele sábado de Carnaval, com o termômetro registrando abrasantes 38 graus, nem mesmo o som de uma banda nas redondezas ou a ausência de um milímetro de tecido seco em seu corpo a lhe servir de toalhinha haviam conseguido fazer. – Trocado pra padaria. A moça do caixa anda nos tamancos comigo! – complementou o homem dando propósito à sua ousadia enquanto exibia as moedas em uma das mãos para que não houvesse dúvida sobre sua honestidade naquele reaver de troco.
Depois de involuntariamente assustá-lo com um agradecimento bem mais esfuziante e impetuoso que os de costume – levando o homem a quase derrubar as moedas – o rapaz, educado, conteve o riso, mas não evitou alargar o sorriso ao se lembrar de uma das inúmeras advertências que Glória, sua mãe, martelava diariamente em sua cabeça: “Atenção, hein Marcelo. Atenção!!! Na rua há de ‘um’ tudo. É preciso um olho lá, outro cá”, pontuava com o polegar. Mesmo julgando que a ação daquele senhor caridoso com um violinista encharcado não exigia desmensurada movimentação ocular, ele não pôde deixar de conferir a Glória uma merecida nota dez no quesito “conhecimento da esquisitice urbana”. E como há anos as frases “martelanescas” de sua mãe compunham o mesmo samba-enredo, bastava ele puxar uma frase para que a letra inteira lhe viesse à mente: “E olhe ao redor, meu filho. Ao redor. Interaja com o público. Pare ao menos para respirar, garoto! Vá que nesse ‘interím’ surja uma oportunidade”.
Àquela altura, desconcentrado e disposto a verificar se o samba de Glória era mesmo de levantar uma avenida, deu uma cafungada no ar quente e se pôs a imaginar o que desfilaria diante de seus olhos. Bem humorado, torceu pelo pitoresco. Imaginou que poderia se deparar com uma noiva a se casar em dia de folia por conta do baixíssimo orçamento para as núpcias e que a caminho do salão de beleza se daria conta que ainda lhe restavam alguns trocados para realizar o sonho de adentrar a igreja ao som de um violino. Com um novo sorriso, questionou se estaria à altura de cumprir tal desejo já que sua vivência fora do universo clássico se resumia ao tema do filme Titanic, uma música que levava sua mãe e tias a abrirem o berreiro sentadas uma ao lado da outra no sofá com os olhos fixos em Marcelo, mas com as mãos sempre travando uma disputa acirradíssima pela posse da caixinha de lenço de papel que usavam para enxugar o mar de lágrimas derramadas.
Ao ver sua imagem refletida no espelho que dois homens carregavam para o interior de uma loja, Marcelo preferiu rir a entrar em choque. Imediatamente voltou a se lembrar de Glória, cuja penúltima frase naquela manhã o havia levado a bater em disparada: “Mas ‘me’ vai com essa ‘blusa’ de flanela, Marcelo! Por que não ‘me’ bota uma de algodão? Vai ‘me’ cozinhar aí dentro!”. Desgrenhado, em bicas e com o rosto tomado por um rubor muito acima do comum para quem havia se exposto apenas ao mormaço, ele começou a redescobrir um mundo onde as mães tinham uma “certa” razão e lamentou não ter dado ouvidos à oferta que recebeu quando já descia a escadaria correndo: “Bota pelo menos umas duas ‘blusinhas’ na mochila pra trocar, garoto! E uma toalha de rosto. Eu ‘te’ jogo tudo pela janela, não quer?”.
Estarrecido com o termômetro, que agora oscilava entre 39 e 40 graus, e mesmo julgando inapropriado se “apresentar” sem camisa, optou por se livrar daquela flanela que tinha se transformado numa segunda pele – mas que seca ele pretendia voltar a vestir segundos antes de entrar em casa para evitar um afago ao bom senso de Glória, ajeitou o cabelo e levou seus globos oculares a um frenesi em sua busca por um oásis às suas exauridas glândulas sudoríparas. Ao avistar uma pequena multidão diante de uma loja de eletrodomésticos, nem pestanejou: cruzou a avenida quase atropelando um ciclista e foi logo se postando esbaforido no trecho da calçada que recebia o refugo do gélido sistema de ar refrigerado daquele comércio.
Ainda hesitante se desonraria alguns dos grandes mestres da música ao fazê-los rivalizar com os berros da locutora contratada para anunciar as promoções relâmpagos do dia, fechou os olhos e preferiu aproveitar a pausa para visualizar mentalmente os movimentos que seus dedos deveriam fazer para executar com perfeição o trecho de uma música que ele ensaiava desde aquela manhã. Desatento ao olhar de interesse da locutora, que passou a iniciar seus anúncios publicitários com “Ei, você aí” numa tentativa sonora de chamar a atenção do violinista, Marcelo permaneceu alhures até ser demovido daquele dedilhar imaginário por uma pergunta gritada por um careca ao seu lado numa rouquidão tenebrosa que quase o levou a derrubar o violino:
– Tô precisando fazer um agrado pra Dona Encrenca… Sabe tocar aquela do Titanic? – averiguou com um estonteante bafo de cerveja. Marcelo nem teve tempo de olhar para o homem, que havia transformado a camiseta em turbante, o par de óculos escuros em tiara e os passadores de cinto da imensa bermuda em cabideiro para uma sorte de sacolinhas de plástico abarrotadas. Visivelmente exausto, agarrava com uma das mãos seu latão de cerveja e apoiava um dos braços sobre um muro artificial que ele criou empilhando três sacolas imensas contendo cada qual uma caixa igualmente gigantesca. Ao abrir os olhos, o violinista, ainda aturdido pelo bafo e pelo nome do filme, se viu flagrado pela tal “Encrenca”, que chegara sorrateiramente a tempo de ouvir a pergunta do careca.
– Titanic, Carlos Alberto? Que coisa mais antiga! E ainda por cima em pleno Carnaval? Faça-me o favor!!! – esbravejou enquanto repassava ao marido mais duas sacolas enormes e retirava um leque da bolsa.
– Mas benzinho… – prosseguiu o rouco – O rapaz só quer ganhar o dinheirinho dele. Fala pra ela… – complementou tentando jogar em Marcelo metade daquele balde de água fria.
– Meu filho, se você quiser ganhar dinheiro, tasque aí um Allah-la-ô e vá para a porta daquele hotel – sugeriu apontando com o leque ainda fechado. – Agora ‘vambora’ Carlos Alberto porque eu tenho lojas e lojas para ver! Ai Meu Deus, mas que calor!!! – lamuriou-se abrindo o leque com veemência antes de partir num abanar frenético deixando o marido e o violinista se entreolhando atônitos por motivos distintos. O primeiro pelo choque de constatar que não assistiria ao jogo de seu time estirado na poltrona da sala como pretendia, e o outro por julgar a sugestão de repertório um tanto excêntrica, apesar de plausível. – Vambora, Carlos Alberto! – gritou a mulher alguns passos a frente ignorando a quantidade de alças de sacola que o marido tinha de encaixar nas mãos antes de alçar voo.
Sensibilizado pelo desespero daquele homem, que tentava apanhar todas as sacolas com uma única mão, Marcelo estendeu o braço e se ofereceu para segurar sua lata de cerveja. Ao avistar a esposa já entretida com uma vitrine, Carlos Alberto entornou a bebida que restava, atirou a lata no meio-fio, apanhou uma latinha extra em sua pochete, abriu-a calmamente e ainda deu uma bebericada antes de entregá-la ao rapaz. Subitamente um novo grito da esposa o levou correr ao seu encontro sob os resmungos de quem suas sacolas quase derrubavam pelo caminho.
Alheia ao fuzuê que se desdobrava na calçada, a locutora continuava olhando encantada para o violinista, por quem se sentia atraída desde a primeira vez que o viu pelas redondezas e que nos últimos tempos, incentivada pelas amigas a abordá-lo, vinha optando por um lanche rápido no almoço para gastar seus minutos extras transitando diante do rapaz na tentativa de vencer a timidez e puxar uma conversa. Considerava haver interesse por parte dele porque vez ou outra, quando o rapaz terminava de enxugar o rosto na manga da camiseta, ela enxergava um desvio de olhar em sua direção. O considerava tímido, nada mais. E se questionada pelas amigas sobre aquela singela atitude, punha-se a lembrá-las que no final do expediente o violinista passava por ela no ponto de ônibus com um rabo de olho quilométrico. E para a locutora, um rabo de olho daqueles era a mais pura e explícita manifestação de interesse dos tímidos de plantão. Lamentava apenas que nestas ocasiões ela já estivesse exausta e faminta demais para um contra-ataque. O que diria se ele soltasse um “oi”? Temia só ter forças para lhe perguntar se ele trazia algo em sua mochila capaz de aquietar seu estômago até que ela chegasse à cantina da faculdade.
Radiante por ver Marcelo novamente sozinho na porta da loja, a moça considerou ser mais incisiva em sua sedução sonora, cujo objetivo era atrair o olhar do rapaz e fazê-lo reconhecê-la. Empolgada, desconsiderava apenas que seu cabelo preso e a máscara de Carnaval que cobria metade de seu rosto poderiam frustrá-la. Em segundos repassou em sua mente as inúmeras marchinhas que conhecia, encontrando na segunda estrofe de “Balancê” a resposta ideal para o rabo de olho do violinista. Enquanto cantava “Quando por mim você passa fingindo que não me vê, meu coração quase se despedaça…” em tom meloso e com os olhos fechados, Marcelo, rindo ao se dar conta que havia ficado com a lata de Carlos Alberto, abaixava-se distraído para colocá-la no meio-fio. Assim que ele se levantou e ela abriu os olhos, surgia outra intervenção:
– Olha, eu não tenho nada com isso, mas é que eu não pude deixar de ouvir a sugestão da mocinha ali do leque – soltou uma senhora abordando Marcelo com uma cutucada no ombro. – Não vá para aquele hotel não, viste. Ali só tem turista brasileiro viajando em pacote de promoção. Eu sei porque meu sobrinho é temporário na recepção – revelou seu segredo abaixando o tom de voz. – Vá para aquele outro lá. – apontou para o hotel e solicitou que ele se aproximasse. – Tá assim de gringo!!! – enfatizou com caras, bocas e dedos antes de seguir para a gélida loja de eletrodomésticos. “E como artista, Marcelo, ouça sempre a voz do povo, meu filho. Porque a voz do povo… Eu preciso dizer de quem é???”. Gargalhando ao se lembrar da frase clichê que encerrava o samba-enredo de Glória, Marcelo voltou a olhar para a senhora do cutuque e num bater de olhos pela loja finalmente notou a locutora, agora sem máscara, mas atenta apenas à sua garrafinha de água, com a qual se recompunha psicologicamente de seu fiasco.
“Então é aqui que ela trabalha?”, pensou num misto de surpresa e emoção ao ver aquela linda morena que ele paquerava ao passar pelo ponto de ônibus com um rabo de olho lançado durante passos lentíssimos. Partia sempre suspirando pela beleza de seu perfil e imaginando, além de como seria seu rosto visto de frente, onde ela poderia trabalhar dado o microfone que carregava em uma das mãos. Ao pensar que em algum momento a moça o tivesse ouvido desafinar pelas redondezas, Marcelo ruborizou enquanto tentava se lembrar de todos os deslizes que cometera nos últimos tempos. Com uma enxugadinha rápida na testa, respirou aliviado ao constatar que pelo menos nunca havia executado o tema de Titanic em público. “Desafinar tudo bem. Ser desatualizado, jamais!”.
Lamentando nunca ter ensaiado uma canção de Frozen ou da saga Crepúsculo, voltou a admirar a moça, que agora de costas para ele, recebia instruções do chefe. A vontade de vê-la de frente logo o retirou de sua breve imersão em questionamentos tolos sobre sua afinação e repertório. Em segundos, muniu-se de coragem e considerou usar o arco de seu violino para finalmente matar a timidez que também o fazia perder décimos preciosos no quesito “explicitar o interesse pela garota dos sonhos”. Com um estufar de peito digno dos mais bravos combatentes, colocou-se em posição de ataque, repassou sua playlist mentalmente e parou em “O Trenzinho do Caipira”, que além de considerar uma obra magnífica, ele já conseguia executar sem erros graças às infinitas horas que passara ensaiando com o apoio dos tutoriais do Youtube.
“Mas e se ela não gostar de Villa-Lobos? Será que alguém pode não gostar de Villa-Lobos?”, questionou olhando ao redor. “E se gostar, mas julgá-lo inapropriado para um dia de Carnaval? Seria mesmo o caso de eu tascar um Allah-la-ô?”, inqueriu tentando avistar a mulher do leque. “Mas e se ela considerar Allah-la-ô óbvio demais e me julgar um tolo por não tocar algo como um… Villa-Lobos!!!”. Desprezada as questões, Marcelo voltou a se preparar para a batalha, mas ao observar uma mão lhe ofertando uma moeda, entrou em pânico: “Mas e se eu acertar com Villa-Lobos, mas achando que estou aqui por dinheiro, ela vier até mim com uma moedinha na mão?”. Aquela dúvida pôs fim ao anseio do rapaz, que apanhou seus pertences e partiu apressadamente.
Finalizada as instruções do chefe, a locutora se virou à procura de Marcelo em tempo de vê-lo quase atropelar o senhor do carrinho de paçoca, cujo apito de alerta atraiu a atenção de todos. Encantada, ela retomou o microfone e antes de voltar a anunciar as promoções, soltou a voz com “Não se perca de mim. Não se esqueça de mim. Não desapareça”, três frases de uma canção que ela julgava serem absolutamente propícias para expressar seu desejo naquele momento. A cantoria lhe rendeu um cutuque: “Olha moça, eu não tenho nada com isso, mas tens uma bela voz, viste. Deverias cantar em barzinho. Mas não cante naquele ali da esquina porque só tem bêbado. Eu sei porque meu sobrinho está de temporário ali!”.
Já refeito da fuga, mas firme em seu propósito de tocar para aquela morena até o final do dia nem que fosse no ponto de ônibus, Marcelo desconsiderava voltar para casa. Ao se ver parado diante do hotel da “brasileirada”, julgou estar no lugar correto. Pensou que numa tarde pra lá de inusitada, ouvisse a voz do povo e tascasse um Allah-la-ô na porta do outro hotel, tudo o que veria seriam pés com meias em chinelos de dedo tentando sambar durante a execução de uma marchinha ou polegares pretensiosamente animados arruinando a vivacidade das melodias de Carnaval. Rio concluindo que músico nenhum merecia aquilo. Com uma nova cafungada no ar abrasante, deu-se por vencido: até o cair da tarde ele se emprestaria ao Carnaval. Em minutos, acessou o Google, baixou a partitura de algumas marchinhas e não demorou a fazê-las ecoar pelos quatro cantos do saguão daquele hotel. Ao observar pelo vidro rasteirinhas e plataformas se remexendo no ritmo correto, quadris se requebrando na medida exata e dedos gingando com entusiasmo e na mais perfeita harmonia, desconsiderou abrir sua caixa. Não pela provável escassez de moeda estrangeira naqueles bolsos, mas porque acima de tudo ofertaria sua música gratuitamente à interação social.
Os hóspedes, que já riam à toa por serem turistas em dias de folia, viram em Marcelo um aquecimento charmoso e singular para a banda que acompanhariam logo mais. Animadíssimos, foram tomando a calçada com o remelexo de seus corpos ainda secos e perfumados, dedos dispostos a promoverem um batuque no que estivesse à mão e vozes límpidas, ainda sem nenhum vestígio de rouquidão. Parabenizado em seu escritório por um casal de desavisados pela gentil “oferta da casa”, o gerente correu para conferir o que acontecia na porta do estabelecimento. Ao se deparar com tantos sorrisos, logo enxergou no rapaz a oportunidade de alavancar elogios em sites de opinião sobre hospedagem e, de quebra, obter um aumento no índice de satisfação das operadoras de turismo. Embora lamentasse não poder contratá-lo, não viu empecilho em praticar a cortesia de convidá-lo para entrar e oferecer uma água e um lugar fresco para tocar.
Não se sabe como, mas em menos de uma hora a notícia que Marcelo estava tocando em um hotel de “grande renome” na cidade corria o Facebook, o Instagram e grupos de Whatsapp dos quais ele sequer fazia parte. Durante o tempo em que Marcelo permaneceu por ali, só não passaram para lhe dar um abraço os que estavam fora da cidade, como sua professora da primeira série, com quem Glória fazia questão de manter contato por razões sentimentais, mas que mesmo ausente enviou uma linda mensagem de texto repleta de emojis. Na ânsia de serem as primeiras a chegar, as corujas do garoto enfiaram seus pés na primeira sapatilha que encontraram pela casa e partiram se penteando e se maquiando dentro do táxi. Uma vez no saguão, esgotada a bateria de seus smartphones, apertaram-se no minúsculo sofá e não economizaram lágrimas, tapas nas mãos e lencinhos de papel enquanto seus aparelhos eram recarregados na recepção.
No final da tarde, ao observar que o comércio fechava as portas, Marcelo largou o violino no colo da mãe e saiu para tomar um fôlego e se preparar psicologicamente para tocar para a linda locutora morena no ponto de ônibus. Assim que desceu o último degrau da escadaria que dava acesso à entrada do hotel, quase trombou com a mulher do leque que continuava irritada com a lentidão do marido: “Vambora, Carlos Alberto!”. Estendendo o olhar, o violinista caiu no riso ao ver um emaranhado de sacolas de cores e tamanhos variados se movendo lentamente como se formassem uma espécie de frente alegórica para algo que se assemelhava a um ser humano. Desmilinguido, mas um ser humano. “Mas benzinho, o leque!”, alertou a voz que escapava por entre as sacolas avisando sobre o leque que ela deixara cair. Ao se aproximar para ajudá-lo com um sorriso no rosto, e antes que a mulher explicasse que no shopping ela não precisaria de leque, Marcelo se deparou com a locutora, que vinha logo atrás de Carlos Alberto e havia se abaixado para apanhar o objeto. Ao se levantar e ver o violinista sorrindo diante dela, a moça conteve a surpresa, sorriu, enfiou o leque em uma das sacolas do homem e olhando para Marcelo comentou:
– Vá que ela mude de ideia.
Petrificado, daquele momento em diante o rapaz só conseguia pensar em seu violino. Havia passado o resto da tarde planejando tocar a marchinha “Linda Morena” especialmente para ela no ponto de ônibus, não ali. Confuso por ter sido pego de surpresa, mas determinado a tocar para a moça, pensou por um instante se ela o aguardaria até que ele fosse apanhar o instrumento. Mas diria o quê? “Não saia daí. Eu já volto!”. Horrível. Melhor algo como “Se você esperar um pouquinho, eu tenho uma surpresa pra você”. Surpresa? Mas e se ela já tivesse sido abordada por outros músicos com aquela canção? E se ela nem ao menos pudesse lhe esperar? Presumiu que talvez fosse o caso de abrir logo o jogo: “Então, a história é a seguinte: você é uma linda morena, certo? Bom, é o que eu acho. Então eu gostaria de tocar uma música para você que se chama Linda Morena. Olha que coincidência! Mas eu preciso do meu violino que está no colo da minha mãe ali dentro. Então se você puder esperar um pouquinho, eu vou até ali e já volto. Tudo bem?”.
Julgando que o sorriso que o rapaz estampava no rosto correspondia ao seu interesse por ele e expressava muito mais do que os dois conseguiriam dizer naquele momento, a moça o admirou por mais alguns segundos e então resolveu quebrar o gelo:
– Eu ouvi dizer que tem um violinista tocando aqui no hotel…
– É ele. – intercedeu Glória entregando o violino ao filho. – Olha Marcelo eu vou até a farmácia comprar uma caixa de lenço de papel porque suas tias já estão enxugando as lágrimas nas mangas. Depois vai me dar um trabalhão pra tirar aquele rímel das pobres das blusinhas. Eu é que sei!!!
Imóvel e sorridente, Marcelo apenas articulou o braço para apanhar o violino.
– Por acaso eu tenho uma caixa aqui… Pode ficar! – ofereceu a locutora já abrindo o zíper da bolsa.
– É??? – satisfez-se Glória arregalando os olhos.
– Mãe! – repreendeu Marcelo entre os dentes.
– Marcelo, olha o estado das suas tias!!! Imagine você, filha… Não podem ver o sobrinho tocar que abrem o maior berreiro. Uma coisa!!! Sobra pra mim, né? Mas uma caixa só já quebra um galho. Qualquer coisa eu pego mais na farmácia. Não sei até que horas vai isso aqui!!!
– Mãe!!
– Tá, tá, tá!!! – disse tentando acalmar o filho. – Muito obrigada. Você é a … ? – dirigiu-se à moça com um sorriso.
– Regina.
– Uma gracinha você! Tá hospedada aqui, filha?
– Não, eu trabalho naquela loja – apontou. – Acabei de sair.
– Deve estar cansada né? Se você quiser entrar pra descansar um pouquinho, fique à vontade. – ofertou Glória com toda a intimidade do mundo. – Vê se toca alguma coisa pra moça, Marcelo. – sussurrou, deu dois passos e voltou para um último lembrete, desta vez ao pé do ouvido. – Ela pode estar com fome. Oferece o sanduíche pra ela porque eu sei que você não comeu. Será que azedou?
– Mãe!!!!!! – esbravejou entre os dentes. Glória correu para o sofá.
Assim que Regina fechou a bolsa e os olhos e os sorrisos dos dois voltaram a se encontrar, um grito rouco ecoou pela avenida:
– Toca aí, garoto!
– Vai embora, Carlos Alberto!!! – gritaram os dois ao mesmo tempo e logo em seguida gargalharam ao se darem conta que o pedido vinha de um rouco, mas não de Carlos Alberto e sim de alguém da “ala” do papelão, a plateia cativa de Marcelo.
Tomado pela plenitude de um dia em que havia experimentado o equilíbrio entre foco em sua música e atenção à vida ao seu redor, Marcelo, feliz, abraçou seu violino com uma ternura extra e executou para o seu já tímido, mas importante público noturno, as marchinhas que marcariam para sempre aquele “seu” momento. Excepcionalmente naquela noite não houve aplausos nem assobios porque a turma do papelão ocupava-se em cantar e dançar ao seu redor. Observando a cena sentadas no sofá, mãe e tias não perderam tempo com flashes e suspiros, mas derramaram muitas lágrimas guardando na memória a imagem daquele garoto feliz em levar felicidade a quem ou a quantas pessoas fossem e onde quer que estivessem. A julgar pela animação que tomava a calçada, elas precisariam de uma caixa extra de lenço de papel. Dançando ao som de “Linda Morena”, Regina acenou carinhosamente para a mãe e para as tias do violinista. Talvez no fundo já percebesse que assim como Marcelo, para ela, aquelas três mulheres também tinham “Allah-la-ô”.
O Violinista com Allah-la-ô
Conto de Oswaldo Vivian Júnior
Confira também Toque de Ninar, Desatino e a série Conto da Foto, além de outras publicações em Oswaldo Vivian Júnior Contos, Crônicas e Afins.
N. do A.: Referências musicais e citações:
Allah-la-ô, de Haroldo Lobo e Nássara; Me Dá Um Dinheiro Aí, de Homero Ferreira, Renato Ferreira e Ivan Ferreira; Balancê, de Braguinha e Alberto Ribeiro; Chuva, Suor e Cerveja, de Caetano Veloso; Linda Morena, de Lamartine Babo e Mário Reis; e O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos.
Sonhava em ser músico profissional. Mas até que suas mãos e queixo abraçassem o violino com o carinho necessário a lhe garantir uma cadeira no palco de um municipal, aproveitava as férias e os feriados para vencer a timidez realizando ensaios abertos pelas ruas mais movimentadas da cidade mesmo naqueles dias em que as duas garrafinhas de água congelada que ele levava de casa em uma pequena mochila quase borbulhavam bem antes do meio-dia, descumprindo sua outra função que era evitar que o sanduíche preparado por sua zelosa mãe com recheio a base de maionese azedasse bem antes que ele se lembrasse de sua existência. “Não ‘me’ esqueça de comer esse sanduíche, hein Marcelo! Melhor até umas onze, senão azeda. Mas seja honesto comigo. Se não comer, quero ele aqui de volta para eu saber que você não comeu”, dizia ela todas as manhãs. Obediente, ele levava o sanduíche de volta. Mesmo azedo.
Comer? Beber? Sequer percebia o olhar de desejo de algumas meninas que por ele passavam! Tardava inclusive a se dar conta do eventual sumiço da nota de dez reais que ele mesmo colocava na caixa do instrumento junto aos seus pés para incitar os transeuntes a prestigiarem o futuro artístico da nação. Era um garoto focado. Marcelo só tinha olhos para seu instrumento e ouvidos para sua música. E desafinasse, quer pela pouca intimidade com Villa-Lobos, Bach ou Chopin, ou pelas inconvenientes gotas de suor que saltavam de seu rosto e bamboleavam pelas cordas do violino, ele não hesitava: depois de uma enxugadinha rápida com a manga da camiseta, punha-se no modo “reiniciar” exacerbando ainda mais o foco naquela nova tentativa de não surrupiar uma única nota das partituras a ponto de muitas vezes só perceber que o comércio havia fechado quando ouvia os aplausos calorosos e os assobios estridentes dos catadores de papelão.
Embora acanhado com os confetes e serpentinas de seu eufórico público noturno, nunca resistia ao impulso de se curvar em agradecimento com a mesma pompa e rigidez corporal dos mais célebres violinistas. A diferença estava em seu sorriso, expressão de um regozijo não pela carícia ao ego, mas pela satisfação de ainda se ver em início de trajetória, o que significava que até ser capaz de ouvir palmas como aquelas em um ambiente com acústica impecável teria tempo de sobra para realizar o árduo trabalho de adestramento de suas três corujas domésticas: mãe e tias. Em sua lógica, recebesse convites na atual fase de sua “carreira”, seria obrigado a aceitar apenas o da orquestra que tivesse o bom senso de posicionar os violinistas no fundo do palco para que ele não passasse pelo vexame frontal de ver suas corujas sendo expulsas do teatro no meio do concerto pelo excesso de flashes a cegarem seus colegas, já que ele, prudente, estaria de óculos escuros, e o volume dos suspiros a enlouquecer o maestro de tal forma que não lhe restaria outra opção a não ser enxotá-las dali com a própria batuta e sob a ovação dos presentes. Incluindo Marcelo.
– Vou deixar aqui um agrado, filho. Sei que não é muito. Mas é que eu ando num miserê… – lamentou um senhor ao depositar cinco reais em sua “caixa-chapéu” e imediatamente retirar dali nove moedinhas de cinquenta centavos. Faltando horas para a chegada da turma do papelão, aquela ação inusitada trouxe o rapaz excepcionalmente de volta à Terra, algo que naquele sábado de Carnaval, com o termômetro registrando abrasantes 38 graus, nem mesmo o som de uma banda nas redondezas ou a ausência de um milímetro de tecido seco em seu corpo a lhe servir de toalhinha haviam conseguido fazer. – Trocado pra padaria. A moça do caixa anda nos tamancos comigo! – complementou o homem dando propósito à sua ousadia enquanto exibia as moedas em uma das mãos para que não houvesse dúvida sobre sua honestidade naquele reaver de troco.
Depois de involuntariamente assustá-lo com um agradecimento bem mais esfuziante e impetuoso que os de costume – levando o homem a quase derrubar as moedas – o rapaz, educado, conteve o riso, mas não evitou alargar o sorriso ao se lembrar de uma das inúmeras advertências que Glória, sua mãe, martelava diariamente em sua cabeça: “Atenção, hein Marcelo. Atenção!!! Na rua há de ‘um’ tudo. É preciso um olho lá, outro cá”, pontuava com o polegar. Mesmo julgando que a ação daquele senhor caridoso com um violinista encharcado não exigia desmensurada movimentação ocular, ele não pôde deixar de conferir a Glória uma merecida nota dez no quesito “conhecimento da esquisitice urbana”. E como há anos as frases “martelanescas” de sua mãe compunham o mesmo samba-enredo, bastava ele puxar uma frase para que a letra inteira lhe viesse à mente: “E olhe ao redor, meu filho. Ao redor. Interaja com o público. Pare ao menos para respirar, garoto! Vá que nesse ‘interím’ surja uma oportunidade”.
Àquela altura, desconcentrado e disposto a verificar se o samba de Glória era mesmo de levantar uma avenida, deu uma cafungada no ar quente e se pôs a imaginar o que desfilaria diante de seus olhos. Bem humorado, torceu pelo pitoresco. Imaginou que poderia se deparar com uma noiva a se casar em dia de folia por conta do baixíssimo orçamento para as núpcias e que a caminho do salão de beleza se daria conta que ainda lhe restavam alguns trocados para realizar o sonho de adentrar a igreja ao som de um violino. Com um novo sorriso, questionou se estaria à altura de cumprir tal desejo já que sua vivência fora do universo clássico se resumia ao tema do filme Titanic, uma música que levava sua mãe e tias a abrirem o berreiro sentadas uma ao lado da outra no sofá com os olhos fixos em Marcelo, mas com as mãos sempre travando uma disputa acirradíssima pela posse da caixinha de lenço de papel que usavam para enxugar o mar de lágrimas derramadas.
Ao ver sua imagem refletida no espelho que dois homens carregavam para o interior de uma loja, Marcelo preferiu rir a entrar em choque. Imediatamente voltou a se lembrar de Glória, cuja penúltima frase naquela manhã o havia levado a bater em disparada: “Mas ‘me’ vai com essa ‘blusa’ de flanela, Marcelo! Por que não ‘me’ bota uma de algodão? Vai ‘me’ cozinhar aí dentro!”. Desgrenhado, em bicas e com o rosto tomado por um rubor muito acima do comum para quem havia se exposto apenas ao mormaço, ele começou a redescobrir um mundo onde as mães tinham uma “certa” razão e lamentou não ter dado ouvidos à oferta que recebeu quando já descia a escadaria correndo: “Bota pelo menos umas duas ‘blusinhas’ na mochila pra trocar, garoto! E uma toalha de rosto. Eu ‘te’ jogo tudo pela janela, não quer?”.
Estarrecido com o termômetro, que agora oscilava entre 39 e 40 graus, e mesmo julgando inapropriado se “apresentar” sem camisa, optou por se livrar daquela flanela que tinha se transformado numa segunda pele – mas que seca ele pretendia voltar a vestir segundos antes de entrar em casa para evitar um afago ao bom senso de Glória, ajeitou o cabelo e levou seus globos oculares a um frenesi em sua busca por um oásis às suas exauridas glândulas sudoríparas. Ao avistar uma pequena multidão diante de uma loja de eletrodomésticos, nem pestanejou: cruzou a avenida quase atropelando um ciclista e foi logo se postando esbaforido no trecho da calçada que recebia o refugo do gélido sistema de ar refrigerado daquele comércio.
Ainda hesitante se desonraria alguns dos grandes mestres da música ao fazê-los rivalizar com os berros da locutora contratada para anunciar as promoções relâmpagos do dia, fechou os olhos e preferiu aproveitar a pausa para visualizar mentalmente os movimentos que seus dedos deveriam fazer para executar com perfeição o trecho de uma música que ele ensaiava desde aquela manhã. Desatento ao olhar de interesse da locutora, que passou a iniciar seus anúncios publicitários com “Ei, você aí” numa tentativa sonora de chamar a atenção do violinista, Marcelo permaneceu alhures até ser demovido daquele dedilhar imaginário por uma pergunta gritada por um careca ao seu lado numa rouquidão tenebrosa que quase o levou a derrubar o violino:
– Tô precisando fazer um agrado pra Dona Encrenca… Sabe tocar aquela do Titanic? – averiguou com um estonteante bafo de cerveja. Marcelo nem teve tempo de olhar para o homem, que havia transformado a camiseta em turbante, o par de óculos escuros em tiara e os passadores de cinto da imensa bermuda em cabideiro para uma sorte de sacolinhas de plástico abarrotadas. Visivelmente exausto, agarrava com uma das mãos seu latão de cerveja e apoiava um dos braços sobre um muro artificial que ele criou empilhando três sacolas imensas contendo cada qual uma caixa igualmente gigantesca. Ao abrir os olhos, o violinista, ainda aturdido pelo bafo e pelo nome do filme, se viu flagrado pela tal “Encrenca”, que chegara sorrateiramente a tempo de ouvir a pergunta do careca.
– Titanic, Carlos Alberto? Que coisa mais antiga! E ainda por cima em pleno Carnaval? Faça-me o favor!!! – esbravejou enquanto repassava ao marido mais duas sacolas enormes e retirava um leque da bolsa.
– Mas benzinho… – prosseguiu o rouco – O rapaz só quer ganhar o dinheirinho dele. Fala pra ela… – complementou tentando jogar em Marcelo metade daquele balde de água fria.
– Meu filho, se você quiser ganhar dinheiro, tasque aí um Allah-la-ô e vá para a porta daquele hotel – sugeriu apontando com o leque ainda fechado. – Agora ‘vambora’ Carlos Alberto porque eu tenho lojas e lojas para ver! Ai Meu Deus, mas que calor!!! – lamuriou-se abrindo o leque com veemência antes de partir num abanar frenético deixando o marido e o violinista se entreolhando atônitos por motivos distintos. O primeiro pelo choque de constatar que não assistiria ao jogo de seu time estirado na poltrona da sala como pretendia, e o outro por julgar a sugestão de repertório um tanto excêntrica, apesar de plausível. – Vambora, Carlos Alberto! – gritou a mulher alguns passos a frente ignorando a quantidade de alças de sacola que o marido tinha de encaixar nas mãos antes de alçar voo.
Sensibilizado pelo desespero daquele homem, que tentava apanhar todas as sacolas com uma única mão, Marcelo estendeu o braço e se ofereceu para segurar sua lata de cerveja. Ao avistar a esposa já entretida com uma vitrine, Carlos Alberto entornou a bebida que restava, atirou a lata no meio-fio, apanhou uma latinha extra em sua pochete, abriu-a calmamente e ainda deu uma bebericada antes de entregá-la ao rapaz. Subitamente um novo grito da esposa o levou correr ao seu encontro sob os resmungos de quem suas sacolas quase derrubavam pelo caminho.
Alheia ao fuzuê que se desdobrava na calçada, a locutora continuava olhando encantada para o violinista, por quem se sentia atraída desde a primeira vez que o viu pelas redondezas e que nos últimos tempos, incentivada pelas amigas a abordá-lo, vinha optando por um lanche rápido no almoço para gastar seus minutos extras transitando diante do rapaz na tentativa de vencer a timidez e puxar uma conversa. Considerava haver interesse por parte dele porque vez ou outra, quando o rapaz terminava de enxugar o rosto na manga da camiseta, ela enxergava um desvio de olhar em sua direção. O considerava tímido, nada mais. E se questionada pelas amigas sobre aquela singela atitude, punha-se a lembrá-las que no final do expediente o violinista passava por ela no ponto de ônibus com um rabo de olho quilométrico. E para a locutora, um rabo de olho daqueles era a mais pura e explícita manifestação de interesse dos tímidos de plantão. Lamentava apenas que nestas ocasiões ela já estivesse exausta e faminta demais para um contra-ataque. O que diria se ele soltasse um “oi”? Temia só ter forças para lhe perguntar se ele trazia algo em sua mochila capaz de aquietar seu estômago até que ela chegasse à cantina da faculdade.
Radiante por ver Marcelo novamente sozinho na porta da loja, a moça considerou ser mais incisiva em sua sedução sonora, cujo objetivo era atrair o olhar do rapaz e fazê-lo reconhecê-la. Empolgada, desconsiderava apenas que seu cabelo preso e a máscara de Carnaval que cobria metade de seu rosto poderiam frustrá-la. Em segundos repassou em sua mente as inúmeras marchinhas que conhecia, encontrando na segunda estrofe de “Balancê” a resposta ideal para o rabo de olho do violinista. Enquanto cantava “Quando por mim você passa fingindo que não me vê, meu coração quase se despedaça…” em tom meloso e com os olhos fechados, Marcelo, rindo ao se dar conta que havia ficado com a lata de Carlos Alberto, abaixava-se distraído para colocá-la no meio-fio. Assim que ele se levantou e ela abriu os olhos, surgia outra intervenção:
– Olha, eu não tenho nada com isso, mas é que eu não pude deixar de ouvir a sugestão da mocinha ali do leque – soltou uma senhora abordando Marcelo com uma cutucada no ombro. – Não vá para aquele hotel não, viste. Ali só tem turista brasileiro viajando em pacote de promoção. Eu sei porque meu sobrinho é temporário na recepção – revelou seu segredo abaixando o tom de voz. – Vá para aquele outro lá. – apontou para o hotel e solicitou que ele se aproximasse. – Tá assim de gringo!!! – enfatizou com caras, bocas e dedos antes de seguir para a gélida loja de eletrodomésticos. “E como artista, Marcelo, ouça sempre a voz do povo, meu filho. Porque a voz do povo… Eu preciso dizer de quem é???”. Gargalhando ao se lembrar da frase clichê que encerrava o samba-enredo de Glória, Marcelo voltou a olhar para a senhora do cutuque e num bater de olhos pela loja finalmente notou a locutora, agora sem máscara, mas atenta apenas à sua garrafinha de água, com a qual se recompunha psicologicamente de seu fiasco.
“Então é aqui que ela trabalha?”, pensou num misto de surpresa e emoção ao ver aquela linda morena que ele paquerava ao passar pelo ponto de ônibus com um rabo de olho lançado durante passos lentíssimos. Partia sempre suspirando pela beleza de seu perfil e imaginando, além de como seria seu rosto visto de frente, onde ela poderia trabalhar dado o microfone que carregava em uma das mãos. Ao pensar que em algum momento a moça o tivesse ouvido desafinar pelas redondezas, Marcelo ruborizou enquanto tentava se lembrar de todos os deslizes que cometera nos últimos tempos. Com uma enxugadinha rápida na testa, respirou aliviado ao constatar que pelo menos nunca havia executado o tema de Titanic em público. “Desafinar tudo bem. Ser desatualizado, jamais!”.
Lamentando nunca ter ensaiado uma canção de Frozen ou da saga Crepúsculo, voltou a admirar a moça, que agora de costas para ele, recebia instruções do chefe. A vontade de vê-la de frente logo o retirou de sua breve imersão em questionamentos tolos sobre sua afinação e repertório. Em segundos, muniu-se de coragem e considerou usar o arco de seu violino para finalmente matar a timidez que também o fazia perder décimos preciosos no quesito “explicitar o interesse pela garota dos sonhos”. Com um estufar de peito digno dos mais bravos combatentes, colocou-se em posição de ataque, repassou sua playlist mentalmente e parou em “O Trenzinho do Caipira”, que além de considerar uma obra magnífica, ele já conseguia executar sem erros graças às infinitas horas que passara ensaiando com o apoio dos tutoriais do Youtube.
“Mas e se ela não gostar de Villa-Lobos? Será que alguém pode não gostar de Villa-Lobos?”, questionou olhando ao redor. “E se gostar, mas julgá-lo inapropriado para um dia de Carnaval? Seria mesmo o caso de eu tascar um Allah-la-ô?”, inqueriu tentando avistar a mulher do leque. “Mas e se ela considerar Allah-la-ô óbvio demais e me julgar um tolo por não tocar algo como um… Villa-Lobos!!!”. Desprezada as questões, Marcelo voltou a se preparar para a batalha, mas ao observar uma mão lhe ofertando uma moeda, entrou em pânico: “Mas e se eu acertar com Villa-Lobos, mas achando que estou aqui por dinheiro, ela vier até mim com uma moedinha na mão?”. Aquela dúvida pôs fim ao anseio do rapaz, que apanhou seus pertences e partiu apressadamente.
Finalizada as instruções do chefe, a locutora se virou à procura de Marcelo em tempo de vê-lo quase atropelar o senhor do carrinho de paçoca, cujo apito de alerta atraiu a atenção de todos. Encantada, ela retomou o microfone e antes de voltar a anunciar as promoções, soltou a voz com “Não se perca de mim. Não se esqueça de mim. Não desapareça”, três frases de uma canção que ela julgava serem absolutamente propícias para expressar seu desejo naquele momento. A cantoria lhe rendeu um cutuque: “Olha moça, eu não tenho nada com isso, mas tens uma bela voz, viste. Deverias cantar em barzinho. Mas não cante naquele ali da esquina porque só tem bêbado. Eu sei porque meu sobrinho está de temporário ali!”.
Já refeito da fuga, mas firme em seu propósito de tocar para aquela morena até o final do dia nem que fosse no ponto de ônibus, Marcelo desconsiderava voltar para casa. Ao se ver parado diante do hotel da “brasileirada”, julgou estar no lugar correto. Pensou que numa tarde pra lá de inusitada, ouvisse a voz do povo e tascasse um Allah-la-ô na porta do outro hotel, tudo o que veria seriam pés com meias em chinelos de dedo tentando sambar durante a execução de uma marchinha ou polegares pretensiosamente animados arruinando a vivacidade das melodias de Carnaval. Rio concluindo que músico nenhum merecia aquilo. Com uma nova cafungada no ar abrasante, deu-se por vencido: até o cair da tarde ele se emprestaria ao Carnaval. Em minutos, acessou o Google, baixou a partitura de algumas marchinhas e não demorou a fazê-las ecoar pelos quatro cantos do saguão daquele hotel. Ao observar pelo vidro rasteirinhas e plataformas se remexendo no ritmo correto, quadris se requebrando na medida exata e dedos gingando com entusiasmo e na mais perfeita harmonia, desconsiderou abrir sua caixa. Não pela provável escassez de moeda estrangeira naqueles bolsos, mas porque acima de tudo ofertaria sua música gratuitamente à interação social.
Os hóspedes, que já riam à toa por serem turistas em dias de folia, viram em Marcelo um aquecimento charmoso e singular para a banda que acompanhariam logo mais. Animadíssimos, foram tomando a calçada com o remelexo de seus corpos ainda secos e perfumados, dedos dispostos a promoverem um batuque no que estivesse à mão e vozes límpidas, ainda sem nenhum vestígio de rouquidão. Parabenizado em seu escritório por um casal de desavisados pela gentil “oferta da casa”, o gerente correu para conferir o que acontecia na porta do estabelecimento. Ao se deparar com tantos sorrisos, logo enxergou no rapaz a oportunidade de alavancar elogios em sites de opinião sobre hospedagem e, de quebra, obter um aumento no índice de satisfação das operadoras de turismo. Embora lamentasse não poder contratá-lo, não viu empecilho em praticar a cortesia de convidá-lo para entrar e oferecer uma água e um lugar fresco para tocar.
Não se sabe como, mas em menos de uma hora a notícia que Marcelo estava tocando em um hotel de “grande renome” na cidade corria o Facebook, o Instagram e grupos de Whatsapp dos quais ele sequer fazia parte. Durante o tempo em que Marcelo permaneceu por ali, só não passaram para lhe dar um abraço os que estavam fora da cidade, como sua professora da primeira série, com quem Glória fazia questão de manter contato por razões sentimentais, mas que mesmo ausente enviou uma linda mensagem de texto repleta de emojis. Na ânsia de serem as primeiras a chegar, as corujas do garoto enfiaram seus pés na primeira sapatilha que encontraram pela casa e partiram se penteando e se maquiando dentro do táxi. Uma vez no saguão, esgotada a bateria de seus smartphones, apertaram-se no minúsculo sofá e não economizaram lágrimas, tapas nas mãos e lencinhos de papel enquanto seus aparelhos eram recarregados na recepção.
No final da tarde, ao observar que o comércio fechava as portas, Marcelo largou o violino no colo da mãe e saiu para tomar um fôlego e se preparar psicologicamente para tocar para a linda locutora morena no ponto de ônibus. Assim que desceu o último degrau da escadaria que dava acesso à entrada do hotel, quase trombou com a mulher do leque que continuava irritada com a lentidão do marido: “Vambora, Carlos Alberto!”. Estendendo o olhar, o violinista caiu no riso ao ver um emaranhado de sacolas de cores e tamanhos variados se movendo lentamente como se formassem uma espécie de frente alegórica para algo que se assemelhava a um ser humano. Desmilinguido, mas um ser humano. “Mas benzinho, o leque!”, alertou a voz que escapava por entre as sacolas avisando sobre o leque que ela deixara cair. Ao se aproximar para ajudá-lo com um sorriso no rosto, e antes que a mulher explicasse que no shopping ela não precisaria de leque, Marcelo se deparou com a locutora, que vinha logo atrás de Carlos Alberto e havia se abaixado para apanhar o objeto. Ao se levantar e ver o violinista sorrindo diante dela, a moça conteve a surpresa, sorriu, enfiou o leque em uma das sacolas do homem e olhando para Marcelo comentou:
– Vá que ela mude de ideia.
Petrificado, daquele momento em diante o rapaz só conseguia pensar em seu violino. Havia passado o resto da tarde planejando tocar a marchinha “Linda Morena” especialmente para ela no ponto de ônibus, não ali. Confuso por ter sido pego de surpresa, mas determinado a tocar para a moça, pensou por um instante se ela o aguardaria até que ele fosse apanhar o instrumento. Mas diria o quê? “Não saia daí. Eu já volto!”. Horrível. Melhor algo como “Se você esperar um pouquinho, eu tenho uma surpresa pra você”. Surpresa? Mas e se ela já tivesse sido abordada por outros músicos com aquela canção? E se ela nem ao menos pudesse lhe esperar? Presumiu que talvez fosse o caso de abrir logo o jogo: “Então, a história é a seguinte: você é uma linda morena, certo? Bom, é o que eu acho. Então eu gostaria de tocar uma música para você que se chama Linda Morena. Olha que coincidência! Mas eu preciso do meu violino que está no colo da minha mãe ali dentro. Então se você puder esperar um pouquinho, eu vou até ali e já volto. Tudo bem?”.
Julgando que o sorriso que o rapaz estampava no rosto correspondia ao seu interesse por ele e expressava muito mais do que os dois conseguiriam dizer naquele momento, a moça o admirou por mais alguns segundos e então resolveu quebrar o gelo:
– Eu ouvi dizer que tem um violinista tocando aqui no hotel…
– É ele. – intercedeu Glória entregando o violino ao filho. – Olha Marcelo eu vou até a farmácia comprar uma caixa de lenço de papel porque suas tias já estão enxugando as lágrimas nas mangas. Depois vai me dar um trabalhão pra tirar aquele rímel das pobres das blusinhas. Eu é que sei!!!
Imóvel e sorridente, Marcelo apenas articulou o braço para apanhar o violino.
– Por acaso eu tenho uma caixa aqui… Pode ficar! – ofereceu a locutora já abrindo o zíper da bolsa.
– É??? – satisfez-se Glória arregalando os olhos.
– Mãe! – repreendeu Marcelo entre os dentes.
– Marcelo, olha o estado das suas tias!!! Imagine você, filha… Não podem ver o sobrinho tocar que abrem o maior berreiro. Uma coisa!!! Sobra pra mim, né? Mas uma caixa só já quebra um galho. Qualquer coisa eu pego mais na farmácia. Não sei até que horas vai isso aqui!!!
– Mãe!!
– Tá, tá, tá!!! – disse tentando acalmar o filho. – Muito obrigada. Você é a … ? – dirigiu-se à moça com um sorriso.
– Regina.
– Uma gracinha você! Tá hospedada aqui, filha?
– Não, eu trabalho naquela loja – apontou. – Acabei de sair.
– Deve estar cansada né? Se você quiser entrar pra descansar um pouquinho, fique à vontade. – ofertou Glória com toda a intimidade do mundo. – Vê se toca alguma coisa pra moça, Marcelo. – sussurrou, deu dois passos e voltou para um último lembrete, desta vez ao pé do ouvido. – Ela pode estar com fome. Oferece o sanduíche pra ela porque eu sei que você não comeu. Será que azedou?
– Mãe!!!!!! – esbravejou entre os dentes. Glória correu para o sofá.
Assim que Regina fechou a bolsa e os olhos e os sorrisos dos dois voltaram a se encontrar, um grito rouco ecoou pela avenida:
– Toca aí, garoto!
– Vai embora, Carlos Alberto!!! – gritaram os dois ao mesmo tempo e logo em seguida gargalharam ao se darem conta que o pedido vinha de um rouco, mas não de Carlos Alberto e sim de alguém da “ala” do papelão, a plateia cativa de Marcelo.
Tomado pela plenitude de um dia em que havia experimentado o equilíbrio entre foco em sua música e atenção à vida ao seu redor, Marcelo, feliz, abraçou seu violino com uma ternura extra e executou para o seu já tímido, mas importante público noturno, as marchinhas que marcariam para sempre aquele “seu” momento. Excepcionalmente naquela noite não houve aplausos nem assobios porque a turma do papelão ocupava-se em cantar e dançar ao seu redor. Observando a cena sentadas no sofá, mãe e tias não perderam tempo com flashes e suspiros, mas derramaram muitas lágrimas guardando na memória a imagem daquele garoto feliz em levar felicidade a quem ou a quantas pessoas fossem e onde quer que estivessem. A julgar pela animação que tomava a calçada, elas precisariam de uma caixa extra de lenço de papel. Dançando ao som de “Linda Morena”, Regina acenou carinhosamente para a mãe e para as tias do violinista. Talvez no fundo já percebesse que assim como Marcelo, para ela, aquelas três mulheres também tinham “Allah-la-ô”.
Muito obrigado Sarah pela postagem do meu conto “O Violinista com Allah-La-Ô. Mais do que um agradecimento em meu nome, o faço certamente em nome de inúmeros escritores sempre em busca de apoio e incentivo. Um abraço de todos nós por este espaço que você oferta à literatura. Grato também aos seus leitores e que todos tenham um bom momento de diversão.